Cultura e democracia hoje:

como uma está para a outra

A cultura afirma-se como um dos elementos constitutivos da própria democracia. É ela quem qualifica e dá sentido à experiência humana, ao estabelecer significado para os laços da vida social. É por ela que nos distinguimos de outros animais. É ela quem agrega valor ao desenvolvimento e abre caminho para a inovação no seio da sociedade. A cultura é um espaço por excelência de afirmação das liberdades; não apenas da liberdade de criação e de expressão, mas também como um importante componente da qualidade de vida dos cidadãos e cidadãs.

Entendida deste modo, a cultura se coloca na centralidade da agenda pública contemporânea, como premissa para todos os povos e nações no enfrentamento dos grandes desafios deste início de século XXI, permeando todos os campos da vida social, todas as áreas do conhecimento.

As políticas culturais desenvolvidas no Brasil, assim como em vários outros países da América Latina nos últimos 15 anos, passaram a ser parte ativa do projeto de construção de nações democráticas e plurais, uma dimensão importante da superação das marcas do longo período de ditaduras militares no continente.

No Brasil, as políticas culturais, particularmente a partir de 2003, tiveram um papel relevante, ao possibilitar que o Estado estabelecesse relações até então inéditas com a sociedade. A diversidade cultural brasileira passou a ser valorizada como o fazer cultural de toda a sociedade, em todo o território. Um ativo que possibilita o desenvolvimento de relações democráticas com o conjunto da sociedade, afirmando assim sua singularidade e suas identidades em meio à pluralidade.

A política pública posta em prática pelo Ministério da Cultura, extinto em 2019, não foi um conjunto de programas e ações isoladas. As inúmeras e diversas ações desenvolvidas estiveram articuladas segundo conceitos filosóficos, políticos e estéticos que foram sendo construídos por artistas, produtores culturais, intelectuais, técnicos, empreendedores e os que investem ou se interessam por cultura e pelas artes. Tais avanços fizeram parte do processo de redemocratização do Estado e da sociedade brasileira nesse início de século.

Hoje, na virada da segunda para a terceira década do século XXI, as políticas culturais democráticas estão ameaçadas por um profundo retrocesso. Esta crise não é só política. Há uma tentativa de retirada de direitos sociais e de implantação de um obscurantismo em todas as dimensões institucionais, com o claro objetivo de fragilizar a democracia.

No campo da cultura, a vulnerabilização da democracia atingiu em cheio as instituições e as políticas públicas. Há uma crise institucional e política da cultura, que se agravou com a chegada da pandemia de Covid-19. Instalou-se no Brasil uma crise sobre crise, na cultura. Um fenômeno que não se dá apenas pelo encerramento dos espetáculos, fechamento dos equipamentos culturais e ausência de público. Há impactos ainda mais sérios advindos do cenário de desmonte das políticas públicas de cultura, estrangulamento financeiro dos segmentos, fragilização dos direitos culturais e perseguição moral aos artistas.

A resolução desse impasse passa por: compreender as bases que sustentam o papel do Estado na cultura, através das políticas públicas; entender quais são os direitos culturais que sustentam essas políticas e alimentam as reinvindicações dos setores; adensar o direito da cultura, que estrutura institucionalmente a gestão das instituições no País; identificar o avanço de novas formas de censura e de ações autoritárias contra o setor artístico na atualidade; e assimilar os paradigmas que embasam uma política cultural  pautada pela democracia, respeito à diversidade cultural brasileira, à multidimensionalidade da cultura e à complexidade de sua gestão.

As perspectivas de recuperação dos processos culturais (eventos, programação, formação, economia etc.) devem considerar os muitos desafios que se impõem, como a reorganização institucional e política do setor da cultura, a reincorporação dos diversos segmentos culturais fragilizados, a busca de mecanismos (administrativos, financeiros e legais) de auxílio ao campo e expansão dos instrumentos de reaquecimento econômico da cultura.

É preciso, sobretudo, recuperar a cultura democrática. O horizonte aponta para confrontos sociais e enfrentamentos políticos. O quadro aponta a necessidade de recompor um debate que conecte as questões de fundo com os temas conjunturais e permita que o país retome o caminho da democracia. A cultura será fundamental para isso.