Começaram os seminários Cultura e Democracia, em que diversos pensadores, realizadores culturais e/ou militantes comprometidos com as agendas da cultura e da democracia encontram-se para discutir diferentes dimensões desses conceitos e suas zonas de intersecção. Com a programação, é também lançado oficialmente o Instituto Cultura e Democracia, centro de referência, pesquisa e formulação de projetos, voltado ao desenvolvimento de estratégias e produção de conhecimento nos campos de cultura, política e sociedade.

Nesta segunda feira, 8 de novembro, a mesa de abertura dos Seminários, mediada por Larissa Mauro, contou com Juca Ferreira (sociólogo, presidente do Instituto Cultura e Democracia, ex-ministro da Cultura, ex-secretário de Cultura de São Paulo e de Belo Horizonte), Christoph Heuser (cientista político, representante da Fundação Friedrich Ebert Brasil), Jorge Bittar (diretor da Fundação Perseu Abramo) e Domenico De Masi (sociólogo e escritor italiano). A Ministra da Cultura, Descolonização e Despatriarcalização da Bolívia, Sabina Orellana, que também comporia a mesa, infelizmente não pode estar presente por conta de uma agenda emergencial.

Em sua fala de abertura, Juca Ferreira apresentou cultura e democracia como universos enormes que precisam ser discutidos em suas dimensões específicas e também em suas relações. Partindo de uma concepção de cultura como direito, o sociólogo apontou a importância de aprofundarmos a reflexão sobre essas relações num contexto como o que vivenciamos, em que ondas de autoritarismo e intolerância emergem em diversos lugares do mundo. As falas de Christoph Heuser e Jorge Bittar, no mesmo sentido, identificaram ataques à democracia e a necessidade de pensar em novas possibilidades de pacto social no contexto atual. Sobretudo em cenários como o brasileiro, em que, segundo Juca Ferreira, os próprios processos de escravização e de colonialismo não foram plenamente superados, resultando numa profunda desigualdade social – que, segundo Bittar, se torna ainda mais drástica com a emergência da extrema direita.

Se tomamos a cultura em sua definição mais ampla, seguindo não somente a diretriz de valorização da diversidade das expressões culturais (que dá o tom às discussões da Unesco), como também a definição que inspira nossa própria Constituição, nosso Plano e Sistema Nacional de Cultura, torna-se quase imprescindível pensar cultura e democracia de forma relacionada. De um lado, porque a democracia é sustentada por valores que são construídos na esfera da cultura – e é, em si mesma, um valor construído na esfera simbólica –, e de outro, porque as concepções de cultura e política cultural fundadas nas ideias de diversidade de expressões e de garantia de direitos também pressupõem os valores democráticos. Domenico de Masi, em sua palestra, mostrou também, por meio de análise histórica, como os regimes totalitários também se apropriaram da cultura para sustentar e justificar o autoritarismo. Segundo ele, experiências como a do fascismo italiano e a da ditadura militar brasileira mostram como é sobretudo na esfera da cultura que os regimes autoritários intervêm para se afirmar. E para ele, é precisamente na cultura que devemos intervir para derrotá-los. Refletindo sobre os contextos atuais de Itália e Brasil, De Masi atentou para o fato de que a superação de experiências de autoritarismo vivenciadas no século XX infelizmente não asseguraram aos cidadãos o conhecimento necessário “para vaciná-los contra o totalitarismo”.

É importante ponderar que muitos pensadores contrários ao avanço das agendas neoliberais e a propostas reformistas apontam, com razão, para o fato de que a democracia está longe de ser um arranjo universal ou neutro – ela também vem sendo utilizada, historicamente, em favor de determinados projetos políticos, normalmente mais hegemônicos. No entanto, os tempos que vivenciamos desde o golpe de 2016 trouxeram retrocessos assustadores demais, que vão de ameaças bastante concretas a direitos básicos a, no nível simbólico, uma espécie de normalização de posicionamentos antes considerados fascistas (tanto dentro do Estado quanto na sociedade civil). Nesse contexto, considero fundamental disputarmos a esfera da cultura e advogarmos pelo imbricamento das ideias de cultura e democracia, ainda que precisemos de constantes aperfeiçoamentos dos nossos projetos reais de “cultura” e “democracia”.

Se a história da humanidade é marcada por disputas em torno de valores, sentidos e significados, o que precisamos garantir hoje é que os aprendizados da história não sejam esquecidos (ou reconstruídos de maneira oportunista) e, sobretudo, que essas disputas possam ser feitas respeitando os direitos humanos básicos, assim como os modos de vida de diferentes grupos sociais, principalmente dos que são negativamente afetados por marcadores de desigualdade.

Assim como me parece fundamental, nesse contexto, pensarmos agendas de política cultural mais amplas e estruturais, comprometidas com o desenvolvimento de um mundo mais justo e menos desigual. Para isso, torna-se imprescindível também considerarmos a complementaridade das discussões sobre política cultural e cultura política. Disputar a cultura, no momento atual, é tarefa urgente e passo fundamental para frear o espírito autoritário que se alastra a passos largos.

socióloga e realizadora cênica, compõe a diretoria do Instituto Cultura e Democracia